[Texto] Martha Medeiros- Faz de conta

"Não respondo teus e-mails, e quando respondo sou ríspido,
distante, mantenho-me alheio: 
FAZ DE CONTA QUE EU TE ODEIO.

Te encho de palavras carinhosas, não economizo elogios, 
me surpreendo de tanto afeto que consigo inventar, 
sou uma atriz, sou do ramo: 
FAZ DE CONTA QUE EU TE AMO.

Estou sempre olhando pro relógio, sempre enaltecendo os planos 
que eu tinha e que os outros boicotaram, sempre reclamando que os 
outros fazem tudo errado: 
FAZ DE CONTA QUE EU DOU CONTA DO RECADO.

Debocho de festas e de roupas glamourosas, não entendo como é
que alguém consegue dormir tarde todas as noites, convidados 
permanentes para baladas na área vip do inferno: 
FAZ DE CONTA QUE EU NÃO QUERO. 

Choro ao assistir o telejornal, lamento a dor dos 
outros e passo noites em claro tentando entender 
corrupções, descasos, tudo o que demonstra o quanto 
foi desperdiçado meu voto:
FAZ DE CONTA QUE EU ME IMPORTO. 

Digo que perdoo, ofereço cafezinho, lembro dos bons momentos, 
digo que os ruins ficaram no passado, que já não lembro de nada,
 pessoas maduras sabem que toda mágoa é peso morto:
 FAZ DE CONTA QUE EU NÃO SOFRO. 

 Cito Aristóteles e Platão, aplaudo ferros retorcidos em 
galerias de arte, leio poesia concreta, compro telas abstratas,
 fico fascinada com um arranjo techno para uma música clássica
 e assisto sem legenda o mais recente filme romeno: 
FAZ DE CONTA QUE EU ENTENDO. 

Tenho todos os ingredientes para um sanduíche inesquecível, a porta 
da geladeira está lotada de imãs de tele-entrega, mantenho um bar 
razoavelmente abastecido, um pouco de sal e pimenta na despensa 
e o fogão tem oito anos mas parece zerinho: 
FAZ DE CONTA QUE EU COZINHO. 

Bem-vindo à Disney, o mundo da fantasia, qual é o seu papel? 
Você pode ser um fantasma que atravessa paredes, 
ser anão ou ser gigante, um menino prodígio que decorou bem o texto, 
a criança ingênua que confiou na bruxa, uma sex symbol a espera do seu cowboy: 
FAZ DE CONTA QUE NÃO DÓI."

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