[Nerds & Geeks] Deuses Americanos: temas do livro e semelhanças e diferenças da série
Já pelo título, mesmo quem não está familiarizado com a obra do mestre Neil Gaiman (já devem ter percebido que sou fã dele, postei essa semana um livro de contos que ele organizou, Criaturas Estranhas no Instagram, realmente, ele é um dos meus 10 autores contemporâneos favoritos) assume que a história é sobre os novos deuses nascidos na América. Errado. Bom, tem esse tema também mas não é o foco. Um dos primeiros pontos explicados é que quando os imigrantes chegaram em solo americano, trouxeram seus deuses com eles. Desde então esses deuses fizeram dos EUA seu lar e tem governado os americanos em segredo mas o declínio do culto deles os tornaram mais mortais do que gostariam de admitir. Eles acabaram virando um retrato dos estereótipos dos lugares de onde vieram. Por exemplo, Mad Sweeney, o leprechaun (apesar de ter dois metros e pouco de altura) veio da Irlanda, onde era guardião de uma pedra sagrada há mais de 3 mil anos atrás) e detesta Guinness (a cerveja nacional irlandesa). Quando perguntam a ele sobre isso, ele responde que há muito mais na Irlanda do que apenas cerveja. Outra metáfora é que ele ficou nos EUA por tanto tempo que perdeu o sotaque.
Um outro exemplo forte de dualidade que os imigrantes sentem nos Estados Unidos vem de Czernobog (lembra daquele demônio azul do desenho Fantasia, da Disney\), o deus eslavo do mal. Ele foi esquecido em sua terra natal e quase ninguém lembra dele na terra nova. Ele lamenta ser uma sombra do que já foi e lamenta pelos dias perdidos. Assim como os imigrantes que sentem falta de seus lugares de origem, sabem que nada os espera se voltarem para lá. Os Novos Deuses só acentuam esses sentimentos.Eles rejeitam os deuses antigos e fazem de tudo para fazer com que sejam totalmente esquecidos. Analisando a luta entre os deuses antigos e novos, podemos perceber a sutileza com que Gaiman mascarou a hostilidade dos sentimentos anti-imigrantes que ecoaram por todo o país desde que os primeiros imigrantes chegaram.
Os temas principais de DA são: crença, religião, sacrifício, morte e a própria América. Gaiman levanta a interessante questão de que a crença dos mortais é necessária para a sobrevivência dos deuses. Esse é o diferencial da história: deuses não são eternos, como se acreditava. Eles precisam da fé dos humanos e isso levanta várias questões: os homens criaram os deuses ou vice-versa. Algum deus pode ser superior à outro. Eles merecem devoção incondicional ou tem que conquistá-la. E eles são realmente necessários ou a humanidade poderia seguir seu rumo sem eles. E a frase de Voltaire é verídica: ´´Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.´´
Religião e crença podem parecer a mesma coisa mas não são. Uma religião é um sistema organizado de crenças. Tem rituais, estrutura e regras. Isso é demonstrado em alguma cenas, como a dos primeiros colonizadores vikings fazendo sacrifícios a Odin. Mr.Wednesday explica a Shadow que há pedaços de solo sagrado espalhados pelo mundo que são tidos como sagrados. Quando humanos encontram esses lugares, sentem uma tendência a marcá-los de alguma forma e não necessariamente um templo, como uma igreja ou sinagoga, apenas algo simbólico para atrair crentes. As atrações à beira da estrada nos EUA, como o maior novelo de lã do mundo, são um bom exemplo. A ideia de que os mortais precisam de algo para acreditar é paradoxa à de que os deuses nos precisam para venerá-los. O conceito de solos sagrados indica a primordialidade do ser humano de ter algo em que acreditar, de reconhecer uma força superior. Lógico, nem todos sentem a necessidade de venerar algo. Mas o ser humano sempre foi fascinado pelos mistérios da natureza, pelo inexplicável. Talvez aqueles lugares nos dêem a sensação de que o mundo é bem mais vasto do que nossa percepção é capaz de conceber.
Para demonstrar o exemplo de como a crença e a religião são temas importantes para desvendar a essência do ser humano, vou contar uma experiência que tive quando era criança: eu tinha 7 anos e meu pai, que era um oficial da Marinha, foi transferido para trabalhar em Salvador. Me mudei para lá com a minha família e quando fui visitar a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, entrei numa sala onde tinham próteses de braços e pernas pendurados do teto. Essas próteses eram objetos entregues aos fiéis que tinham alcançado alguma graça ou cumprido alguma penitência. Lembro-me de ter achado a visão um pouco assustadora e perguntei à minha mãe o que eram aquelas objetos tão peculiares.Fiquei refletindo sobre como a religião sempre foi um fator tão importante na vida dos homens desde a pré-história. O conceito de morte é demonstrado como sendo universal, já que nem os deuses estão isentos dela.
O tema da América é exemplificado no misterioso deus-búfalo que aparece a Shadow em sonhos. Ele simboliza o resgate aos hábitos dos Native Americans. Após inúmeras charadas, ele finalmente explica que simboliza a própria terra, que as primeiras pessoas que chegaram lá acreditavam em um criador mais por simbolismo do que por necessidade. A devoção delas vinha para o que realmente as sustentava:a terra. Por causa dessa crença, os EUA sempre foram e sempre serão um lugar ruim para deuses.Pode não fazer sentido no início mas houve uma época em que o país tinha como lema essas duas palavras: manifest destiny, a crença de que a América iria se estender de costa a costa e conter toda a terra dentro. E isso, mais do que tudo, simboliza a mensagem de Deuses Americanos. Deuses podem vir para lá, podem nascer lá mas nenhum deles realmente vai durar. Porque os americanos prezam a América acima de tudo.
Eu li o livro em 2014 e admito que achei a adaptação da Amazon Prime Video ótima, apesar de modificar alguns pontos, o que é inevitável porque é uma obra longa demais para ser adaptada da maneira mais fiel possível. Espera-se que a série cubra aproximadamente um terço da história. Ela expande o papel de alguns personagens secundários, como Laura Moon, a esposa morta de Shadow e Mad Sweeney. Os produtores da série (salve, Bryan Fuller!) conseguiram capturar o estilo do mestre Neil ao apresentar uma estética inovadora e ousada, como as cenas de sexo que são mostradas sem pudores! Sem contar a abertura, um espetáculo à parte. Recomendo para todos.
Oi Clara,
ResponderExcluirAdorei o tema, importante também falar a diferença entre crença e religião! Adorei suas explicações.
beijos
Oi Aichha, fico feliz em saber que tenha gostado e vc segue alguma religião ou crença pessoal?
ResponderExcluirBjos