[Resenha] The Underground Railroad: Os caminhos para a liberdade
Cora é uma jovem escrava em uma plantação de algodão na Georgia. A vida é infernal para todos os escravos, mas especialmente terrível para Cora. Uma pária até entre outros africanos, ela está chegando à maturidade, que a tornará vítima de dores ainda maiores. Quando um recém-chegado da Virgínia, Caesar, revela uma rota de fuga chamada, a ferrovia subterrânea, ambos decidem escapar de seus algozes. Mas nada sai como planejado. Cora e Caesar sabem que estão sendo caçados: a qualquer momento podem ser levados de volta a uma existência terrível sem liberdade.
O que eu achei?
Inicialmente, o que me chamou a atenção para esse livro encontra-se na capa, porém não é o título ou mesmo o autor, mas sim seu prêmio: o Pulitzer. Até então já li dois livros que o receberam: A visita cruel do tempo, da Jennifer Egan, e Toda luz que não podemos ver, do Anthony Doerr (esse apenas em tese, pois não me lembro de oficialmente terminá-lo); e até agora não me decepcionei em nenhuma das ocasiões. Então tomei por “regra” que esse seria um prêmio confiável, pois o que não falta por aí é blurb genérico que diz qualquer coisa para empregar valor sem real mérito. E posso dizer que minha relação Pulitzeriana continua firme e forte, talvez até mais.
Historicamente, a “ferrovia subterrânea” era na verdade uma rede de pessoas, abolicionistas, que ajudavam escravos a se libertarem de seus proprietários. Auxiliavam na travessia de lugares onde o conflito racial era mais intensificado, garantiam-lhes abrigo em suas propriedades e demais formas de manter sua segurança, mesmo que temporária. Sendo assim, Colson pega essa premissa e transforma numa verdadeira ferrovia, com sua linha passando pelo principais estados escravagistas. Uma linha férrea que ninguém sabe factualmente quem a escavou, apenas que sua existência é de vital importância à vida negra.
Cada um desses estados serve como uma personificação do manifesto opressor americano. De forma que, ao desembarcar em cada um deles, Cora depara-se com realidades completamente diferentes, pequenos universos paralelos entre si. Fugindo da fazenda de algodão na Georgia, onde viveu toda a sua curta e excruciante vida, ela passará por um estado utopicamente acolhedor, onde o negro é tido como igual, porém a verdade encontra-se mais a fundo; o seguinte será então uma espécie de regime ariano, os negros considerados uma raça indigna até mesmo de ser utilizada como mão de obra escrava e serão caçados e assassinados brutalmente como bestas impuras; e assim sucessivamente. Logo, cada uma das localidades é como pegar uma pequena fatia da escravidão e elevá-la ao máximo, mostrando o rastro sanguinário que a América carrega em seu legado com um toque de realismo mágico que amarra a história de forma incrível.
Em consequência disso, ao longo de sua jornada pelo território americano, diversas mãos serão a oferecidas em prol de sua sobrevivência. A começar por Caesar, quem incita-lhe os pensamentos de fuga, de seguir os passos de sua mãe, uma das poucas pessoas que já conseguiu fugir da fazenda de algodão dos Randall. E, na medida em que seguem em frente, muitos outros possuem forte influência na história, porém existem duas figuras que retomam constantemente a assombrar Cora: sua mãe, Mabel, e o maior caçador de escravos da época, Ridgeway. Cora se ressente por Mabel tê-la deixado para trás em sua escapada e certa ambiguidade sustenta-se ao longo de toda a narrativa: a história de sua mãe, e em consequência a de sua avó, fornecem-na forças para seguir em frente, ao mesmo tempo em que teria tornado sua vida muito mais fácil se a tivesse levado junto. Já Ridgeway, que não conseguiu capturar Mabel quando recentemente fugida, toma a prisão de Cora como seu objetivo de vida, em forma de vingar-se cosmicamente de sua mãe.
Cora é uma personagem extremamente real e complexa. O que mais mexeu comigo durante a leitura é como a sua persistência em sobreviver parte não só dela mesma, mas também em memória de quem a abrigou ou ajudou de alguma forma. Sendo assim, é muito mais um senso de responsabilidade que sobrevivência propriamente dita. Cora torna-se um símbolo para si e aos outros, como aquela capaz de quebrar o ciclo do homem branco, prevalecendo acima de qualquer intempérie que surja no seu caminho, mesmo que as perdas amontoem-se umas nas outras.
Colson traz em sua escrita um retrato escravista que me surpreendeu muito. A forma como narra as barbáries sofridas pelo povo africano — como se fosse algo comum, corriqueiro até, pois essa era a verdade na época — choca muito mais que um filme sobre o mesmo assunto, em que as imagens gráficas de sofrimento são artifícios para promover a óbvia rejeição do espectador. Possui, sim, o claro intuito de chocar o leitor, pois são atrocidades inimagináveis as passadas pelos personagens (reais e fictícios), porém cumprem seu papel com esmero justamente por não impor o que o leitor deve sentir ao lê-las. Em contrapartida, as questões existenciais são também um grande ponto do livro e estão sempre nas minúcias do que está sendo dito. Cada mínima conquista de Cora resulta em um aperto tão forte no peito pela percepção da miséria que era deliberadamente permitida em um tempo não tão longe do nosso. E que permitiu que suas ondas sofressem lapidações além do tempo para que reverberassem resquícios nos dias de hoje, comumente desvalorizadas pela cultura branca que ainda impera sobre as demais.
The Underground Railroad é, portanto, um retrato mordaz e brutal — como deve ser — dos tempos de ouro do regime escravista. Entre as andanças de Cora, o autor insere também capítulos centrados em personagens cujas ações modificam seu percurso, formando uma imagem onde em que sabemos todos os lados da história e o resultado é maravilhoso. Um livro que realmente merece a hype que tem recebido desde o ano passado. Ao terminá-lo a única coisa minimamente racional que me passava pela cabeça era começar tudo de novo, mesmo que se fizesse necessário encarar toda a carga de sentimentos que as palavras nele impressas me causaram logo de primeira. Com certeza um dos melhores livros do ano até então.
Inicialmente, o que me chamou a atenção para esse livro encontra-se na capa, porém não é o título ou mesmo o autor, mas sim seu prêmio: o Pulitzer. Até então já li dois livros que o receberam: A visita cruel do tempo, da Jennifer Egan, e Toda luz que não podemos ver, do Anthony Doerr (esse apenas em tese, pois não me lembro de oficialmente terminá-lo); e até agora não me decepcionei em nenhuma das ocasiões. Então tomei por “regra” que esse seria um prêmio confiável, pois o que não falta por aí é blurb genérico que diz qualquer coisa para empregar valor sem real mérito. E posso dizer que minha relação Pulitzeriana continua firme e forte, talvez até mais.
Historicamente, a “ferrovia subterrânea” era na verdade uma rede de pessoas, abolicionistas, que ajudavam escravos a se libertarem de seus proprietários. Auxiliavam na travessia de lugares onde o conflito racial era mais intensificado, garantiam-lhes abrigo em suas propriedades e demais formas de manter sua segurança, mesmo que temporária. Sendo assim, Colson pega essa premissa e transforma numa verdadeira ferrovia, com sua linha passando pelo principais estados escravagistas. Uma linha férrea que ninguém sabe factualmente quem a escavou, apenas que sua existência é de vital importância à vida negra.
Cada um desses estados serve como uma personificação do manifesto opressor americano. De forma que, ao desembarcar em cada um deles, Cora depara-se com realidades completamente diferentes, pequenos universos paralelos entre si. Fugindo da fazenda de algodão na Georgia, onde viveu toda a sua curta e excruciante vida, ela passará por um estado utopicamente acolhedor, onde o negro é tido como igual, porém a verdade encontra-se mais a fundo; o seguinte será então uma espécie de regime ariano, os negros considerados uma raça indigna até mesmo de ser utilizada como mão de obra escrava e serão caçados e assassinados brutalmente como bestas impuras; e assim sucessivamente. Logo, cada uma das localidades é como pegar uma pequena fatia da escravidão e elevá-la ao máximo, mostrando o rastro sanguinário que a América carrega em seu legado com um toque de realismo mágico que amarra a história de forma incrível.
Em consequência disso, ao longo de sua jornada pelo território americano, diversas mãos serão a oferecidas em prol de sua sobrevivência. A começar por Caesar, quem incita-lhe os pensamentos de fuga, de seguir os passos de sua mãe, uma das poucas pessoas que já conseguiu fugir da fazenda de algodão dos Randall. E, na medida em que seguem em frente, muitos outros possuem forte influência na história, porém existem duas figuras que retomam constantemente a assombrar Cora: sua mãe, Mabel, e o maior caçador de escravos da época, Ridgeway. Cora se ressente por Mabel tê-la deixado para trás em sua escapada e certa ambiguidade sustenta-se ao longo de toda a narrativa: a história de sua mãe, e em consequência a de sua avó, fornecem-na forças para seguir em frente, ao mesmo tempo em que teria tornado sua vida muito mais fácil se a tivesse levado junto. Já Ridgeway, que não conseguiu capturar Mabel quando recentemente fugida, toma a prisão de Cora como seu objetivo de vida, em forma de vingar-se cosmicamente de sua mãe.
Cora é uma personagem extremamente real e complexa. O que mais mexeu comigo durante a leitura é como a sua persistência em sobreviver parte não só dela mesma, mas também em memória de quem a abrigou ou ajudou de alguma forma. Sendo assim, é muito mais um senso de responsabilidade que sobrevivência propriamente dita. Cora torna-se um símbolo para si e aos outros, como aquela capaz de quebrar o ciclo do homem branco, prevalecendo acima de qualquer intempérie que surja no seu caminho, mesmo que as perdas amontoem-se umas nas outras.
Colson traz em sua escrita um retrato escravista que me surpreendeu muito. A forma como narra as barbáries sofridas pelo povo africano — como se fosse algo comum, corriqueiro até, pois essa era a verdade na época — choca muito mais que um filme sobre o mesmo assunto, em que as imagens gráficas de sofrimento são artifícios para promover a óbvia rejeição do espectador. Possui, sim, o claro intuito de chocar o leitor, pois são atrocidades inimagináveis as passadas pelos personagens (reais e fictícios), porém cumprem seu papel com esmero justamente por não impor o que o leitor deve sentir ao lê-las. Em contrapartida, as questões existenciais são também um grande ponto do livro e estão sempre nas minúcias do que está sendo dito. Cada mínima conquista de Cora resulta em um aperto tão forte no peito pela percepção da miséria que era deliberadamente permitida em um tempo não tão longe do nosso. E que permitiu que suas ondas sofressem lapidações além do tempo para que reverberassem resquícios nos dias de hoje, comumente desvalorizadas pela cultura branca que ainda impera sobre as demais.
The Underground Railroad é, portanto, um retrato mordaz e brutal — como deve ser — dos tempos de ouro do regime escravista. Entre as andanças de Cora, o autor insere também capítulos centrados em personagens cujas ações modificam seu percurso, formando uma imagem onde em que sabemos todos os lados da história e o resultado é maravilhoso. Um livro que realmente merece a hype que tem recebido desde o ano passado. Ao terminá-lo a única coisa minimamente racional que me passava pela cabeça era começar tudo de novo, mesmo que se fizesse necessário encarar toda a carga de sentimentos que as palavras nele impressas me causaram logo de primeira. Com certeza um dos melhores livros do ano até então.
Escrito por Julio Gabriel
Oi Julio,
ResponderExcluirNão conhecia esta obra e achei super interessante um relato em forma de viagem mostrando diversos locais com tratamentos diferentes aos negros. Parece bem uma trama bem inteligente e cheia de significado.
beijos
Quero ler esse!
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