[Crítica] Divino Amor
Sinopse:
Divino Amor é um filme de ficção científica brasileiro dirigido por Gabriel Mascaro, que conta a história de uma mulher profundamente religiosa e funcionária de um cartório que utiliza sua posição no trabalho para tentar salvar casais que chegam para se divorciar.
O que eu achei?
Arrancando elogios da
crítica internacional após sua sessão em Sundance, ‘Divino Amor’ é um filme que
invariavelmente dividirá opiniões (ainda mais em nosso país). Afirmar que a
obra é uma crítica ao governo atual, em minha opinião, seria reduzir demais sua
força. Não é que a narrativa não carregue críticas ferrenhas em seu discurso a
todo obscurantismo intelectual e conservadorismo propagado pelo presidente
eleito — ela carrega. Contudo, toda a problemática evidenciada pelo filme teve
seu início há anos e está diretamente ligada ao “descobrimento” e
desenvolvimento de nossa nação.
Desde a ‘primeira missa
no Brasil’ celebrada pelo bispo Henrique de Coimbra e imortalizada de modo
fantasioso no quadro de Victor Meirelles, passando pela catequização compulsória
dos povos indígenas e, mais tarde, dos negros e negras praticantes de religiões
de matriz africana; a história política e de expansão das terras brasileiras
está intrinsecamente ligado a repressão por alguma religião — primeiramente do
catolicismo e, durante nossa contemporaneidade nebulosa, do protestantismo.
Esse nosso sonho utópico (ou poderíamos chamar de cegueira intencional) por uma
nação laica é constantemente violado, mesmo sendo um dos itens previstos em
nossa Constituição brasileira de 1988 — tanto de formas ordinárias como o “Deus
é fiel” em nossa moeda oficial, quanto de maneiras mais violentas como as
constantes invasões e destruições de terreiros de candomblé. E é exatamente
sobre essa violação da laicidade do Estado e imposição de fé que ‘Divino Amor’
se trata.
Tendo uma distopia
evangélica como palco, acompanhamos Joana (Dira Paes)
e Danilo (Júlio Machado), casal que busca de todas as maneiras conceber o seu
primeiro filho. Joana é funcionária de um cartório onde organiza os processos
de divórcio — ou, ao mesmo, deveria organizar. Sempre que enxerga uma
oportunidade, ela tenta “concertar” a relação dos casais e, aproveitando-se da fragilidade
dos cônjuges, convida-os a ir a um dos encontros de sua religião: a Divino Amor.
Conforme a trama avança, o grande novelo envolvendo esses encontros religiosos,
assim como as dificuldades relacionadas à fecundação de Joana, vai se
desenrolando aos poucos.
A direção de Gabriel
Mascaro é bastante segura no que deseja mostrar. Ele não teme usar de todas as
artimanhas audiovisuais necessárias para contar a história criada por ele e
co-escrita por Esdras Bezerra, Lucas Paraizo e Rachel Daisy Ellis. Temos um trabalho
bastante apurado em relação a uso de bordas e molduras, câmera na mão e um uso aguçado
da iluminação. Mesmo com todos esses elementos, a direção não evita fazer
planos-sequências durante revelações desconfortáveis ou produzir inquietantes
planos-fixos.
Como escrevi
anteriormente, o filme se passa em uma distopia religiosa. Todavia, seria assim
tão distante de nossa realidade atual? Esse confronto entre o universo
ficcional do longa-metragem e a nossa realidade atual, onde somos comandados
por uma milícia neo-pentecostal, é exposto constantemente em tela. Desde seu
logotipo fazendo alusão a pomba branca da Igreja Universal do Reino de Deus até
a forma com que o pastor se porta; os detalhes mais incômodos expostos na
história já acontecem em uma igreja perto da sua casa — dando a devida
proporção a tecnologia, assim como o neon e a lascividade vistas em tela. Em uma
sequência, por exemplo, Joana vai buscar respostas as dúvidas que a afligem em
um drive-thru de orações — projeto já
noticiado em nossos jornais desde 2010.
Ao fim da narrativa e
do arco de Joana, muito semelhante ao de uma pessoa que sofre uma “desprogramação”
para se libertar de uma seita, fica um gosto amargo na boca do espectador.
Amargo, porque, por mais desconcertante que seja o roteiro, não chegou nem a roçar
na progressiva ligação entre militarização e religião; a violência e o divino —
as imagens do ‘Exercito de Cristo’ ou as notícias recentes de traficantes
evangélicos expulsando religiões de matriz africana de suas comunidades são
apenas alguns exemplos. Enquanto o catolicismo, após tantos erros do passado, aparenta
estar se modernizando e se abrindo para questões pungentes da modernidade como
aborto, homossexualidade e ateísmo; o protestantismo parece estar em busca de
sua própria cruzada. É para se deixar apreensivo essa mistura explosiva entre
uma presidência populista sem preparo algum junto a uma crescente onda fascista
em antros religiosos. ‘Divino Amor’ pode chocar espectadores incautos, mas nossa
realidade (assim como nossa projeção para o futuro) é infinitamente mais
assustadora.
Trailer:
Escrito por Pedro Alves
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