[Crítica] A Luz no Fim do Mundo
Sinopse: Um homem tenta proteger sua filha dos perigos do mundo depois que uma praga devastadora destrói a maior parte da população feminina.
O que eu achei?
Vou
ser sincero com você. Quando assisti ao trailer de ‘A Luz no Fim do Mundo’
(2019) fiquei com um sentimento dúbio dentro de mim. Achei a fotografia muito
bonita e todos que me conhecem sabem que coming
of age é o meu ponto fraco cinéfilo (que dirá um comigo of age distópico!),
mas incomodamente, não podendo ser ignorado, lá estava ele protagonizado o
filme, ele mesmo: Casey Affleck. Por conta disso, vamos tirar esse elefante
branco da frente desse meu texto. Para quem não está ligado, aqui vai um
resumo: nos idos de 2017, enquanto concorria ao Oscar de melhor ator por 'Manchester
à Beira-Mar' (2017), Casey Affleck foi processado por duas (!) mulheres que o
acusaram de assédio sexual. Os crimes teriam ocorrido durante a gravação do mockumentary 'Eu Ainda Estou Aqui'
(2010), filme dirigido por Casey que acompanhava a reinvenção de Joaquin
Phoenix (sim, o coringa!) de ator para rapper. Claro que as acusações não
impediram que Casey Affleck fosse o vencedor de diversas premiações, inclusive o próprio Oscar durante o apogeu do movimento #MeToo; e, excetuando que atualmente o Joaquin
Phoenix não fala mais o nome dele (ao menos, publicamente), as acusações não
tiveram muitas consequências para o ator.
Isso
levanta vários questionamentos sobre se existe a tão almejada separação entre obra
e artista — principalmente no caso de ‘A Luz no Fim do Mundo’ (2019) onde o Casey
Affleck dirige (!), roteiriza (!!) e protagoniza (!!!). Daria um baita textão
usando várias fontes acadêmicas, exemplos da literatura, da música clássica, do
próprio cinema e das outras artes. Graças ao bom deus, a redatora Constance
Grady do Vox escreveu um texto incrível que eu vou deixar o link aqui para quem quiser se aprofundar nessa seara que, já adianto, é
complexa e possui múltiplas respostas. MINHA opinião é: ninguém é
obrigado a fazer essa separação. Se você consegue tal feito e acha que com isso
sai ganhando com a multiplicidade de obras e visões que entra em contato;
beleza. Se você não consegue, pois a cada cena da obra fica imaginando como a Tippi
Hedren sofreu na mão do Hitchcock, ou que tal atriz foi abusada por Harvey
Weinstein para conseguir protagonizar esse filme, ou, meu deus!, como as obras
do Monteiro Lobato são racistas e possuem todo um subtexto que apóia a eugenia;
tudo bem também. Existe uma pluralidade de olhares, artistas e obras e ninguém é obrigado a perder o tempo (e dar lucro) assistindo algo que não se sente bem. E é isso.
“Mas
e sobre o filme, Pedro? Escreveu, escreveu, escreveu e não falou nada sobre a
obra em si”.
Bem.
Eu deixei bem claro minha posição sobre o realizador e contextualizei todo o
ranço que possuía para explicar a minha postura de hater antecipado. Assim como para explicar para você a
minha surpresa ao sair da projeção gostando do filme (sim, nem eu estou
acreditando nisso!).
A
premissa parece ser uma piada de muito mau-gosto do Affleck em meio aos
processos que está passando. Em um futuro distópico, a humanidade foi assolada
por um vírus que dizimou (quase) toda a população de mulheres. Affleck é um pai
que tenta criar sua filha pré-adolescente (Anna Pniowsky, talvez, o maior
achado da obra evitando que a personagem caia na "adultização" insuportável) nessa
terra de ninguém, obrigando-a a vestir-se com um estilo tomboy e se apresentar como um garoto. A maneira
como a dupla sobrevive através de um cotidiano nômade faz com que a comparação
com 'A Estrada' (2009), onde Viggo Mortensen percorre com seu filho uma América
devastada após uma catástrofe, seja inevitável. Contudo, as comparações param
por aí em decorrência dos objetivos opostos de seus realizadores. Enquanto o
longa-metragem de John Hillcoat traça um estudo sobre a sociedade contemporânea
e sobre a natureza animalesca dos indivíduos (para o bem e para o mal); Casey
Affleck usa sua história como uma parábola de amadurecimento. Não da
pré-adolescente, mas do personagem dele como um marido e pai de luto.
A
direção faz escolhas bastante ousadas e, talvez, tenham sido elas que mais me
incomodaram e agradaram ao mesmo tempo. A sequência inicial, por exemplo, consiste em um extenso (mesmo! é incrivelmente longo!) diálogo entre pai e filha. Por mais que
a conversa seja, em certos momentos, constrangedoramente didática ao explicar o
cerne da história (não mais do que quando é retomado já próximo ao fim do filme),
é tanto uma ótima apresentação da dinâmica existente entre os dois, quanto uma excepcional
construção de personagens. Já ao fim da história, também, temos um epílogo que é muito
mais extenso do que deveria ser e vai inexplicavelmente mais adiante do que
deveria (dando a impressão de que o Affleck desconhecia o clímax da própria
história) ocasionando com que descambe no melodrama — decisão que eu particularmente
não gosto.
Talvez
o maior êxito da obra seja ao posicionar as peças do tabuleiro emocional dos
espectadores para que as duas sequências de tensão sejam realmente sentidas. A
direção de Affleck da violência durante os confrontos físicos parecem testar os
espectadores através de planos fixos em sua maioria ou com pouquíssima ou
nenhuma movimentação de câmera; que por conta de seus inícios abruptos não revelam
de imediato o que está acontecendo, mas não tentam esconder as consequências sangrentas
de tais ações — assemelhando-se bastante a uma criança que assiste a um filme
de terror com as mãos na frente do rosto, mas, vez ou outra, toma
coragem e enxerga por entre os dedos. A forma com que, durante as cenas mais
tensas, somente ouvimos os sons diegéticos produzidos pelos próprios
personagens (tais como respiração, ou socos recebidos) também adiciona mais
gravidade ao que testemunhamos.
Existe
um subtexto que perpassa o filme todo e para alguns, como eu, pode soar
risível. A fé religiosa ligada a uma das únicas bondades possíveis nesse cenário
inóspito possivelmente mereça nossa descrença (rs!). Contudo, a meu ver, o roteiro parece balancear levemente essa motif
ao colocar um personagem amoral nos seios da casa do Senhor.
No
fim, ‘A Luz no Fim do Mundo’ (2019) surpreendentemente é um eficiente drama distópico
sobre a relação paternal, sobre o peso das expectativas que colocamos sobre os
outros, sobre o luto, e sobre a percepção da independência alheia. Bem intimista
e construído vagarosamente pode incomodar alguns expectadores pelo seu lento
desenvolvimento, mas as sequências de tensão recompensam ao nos colocar em uma montanha-russa de nervosismo durante a descida em direção a uma sociedade
onde não existe mais lei, justiça e regras.
Trailer:
Escrito por Pedro Alves
Nenhum comentário