[News] Em entrevista ao Cinejornal, do Canal Brasil, Wagner Moura fala sobre o lançamento de Marighella
No Cinejornal que vai ao ar hoje, dia 27/10, às 13h30, Simone Zuccolotto entrevista o ator e diretor Wagner Moura. Ele está lançando "Marighella", filme dirigido por ele que chega aos cinemas no dia 04/11, e falou longamente sobre isso: a censura e boicote que o filme vem sofrendo, vazamento de uma cópia, como é lançar esse filme no governo Bolsonaro. Confira a entrevista na íntegra abaixo:
Simone Zuccolotto: Wagner, quase dois anos depois a gente se encontra para falar de novo de Marighella. A última vez que a gente se encontrou para falar desse filme você estava indo para o festival de Berlim para lançar o Marighella. Eu me lembro que na ocasião a gente falou do que significava lançar esse filme neste governo. E mais do que isso, como você tinha sofrido resistência para captar recursos para fazer um filme com esse personagem e com esse tema. Quase dois anos depois, muitas pedras no meio do caminho, e Marighella vai ser lançado agora quando completam 52 anos da morte desse personagem tão importante da nossa história. E aí, qual é a avaliação que você faz?
Wagner Moura: É inacreditável que um filme rodado em 2017 estreie em 2021 no Brasil. Esta espera foi muito angustiante pra mim. Nada foi fácil com Marighella, como a gente conversou: financiamento, filmagem, ameaças, tudo isso. E agora esse tempo de espera para que um filme, um produto cultural aconteça. Marighella foi feito para o Brasil. A gente estreou em 2019 no festival de Berlim, uma estreia consagradora num dos maiores festivais de cinema do mundo, aplaudidíssima, críticas ótimas, passamos por diversos festivais do mundo... eu passei o ano de 2019 quase todo viajando o mundo com Marighella. Mas o foco nosso era o Brasil. Marighella foi um filme feito para o público brasileiro. Então foi uma espera muito angustiante. Essa espera fiz mais sobre o que é o Brasil hoje do que o personagem do filme que a gente fez.
SZ: Tem duas questões que se completam, se sobrepõem: uma questão política do filme e uma questão artística. Não sei se é possível a gente dissociar essas duas questões mas eu queria falar um pouco da vertente artística do filme. Você fez esse filme baseado na pesquisa do Mário Magalhães, que escreveu um livro, uma pesquisa super minuciosa, vertical. E aí no recorte você já faz uma escolha radical que é pelos últimos cinco anos de vida do Marighella, né? De 64 a 69, quando ele é assassinado.
WM: Eu acho que o recorte sempre foi, desde o começo, uma coisa importantíssima para nós. O livro do Mário é uma obra extraordinária, que conta a vida de Marighella desde quando Marighella nasceu na Baixa do Sapateiro, na Bahia. Esse homem, esse baiano, filho de uma mulher negra, filha de escravizados africanos, com um italiano, que viveu a vida ali na Baixa do Sapateiro e que carregou o que viu ali, essa Bahia pobre, negra, oprimida, para a sua luta, pro resto da vida. E Marighella foi um homem que militou pela justiça social, pelo direito dos trabalhadores, pelo direito dos mais pobres, pelas liberdades civis desde sempre. E o fez na legalidade durante toda a sua vida. Digo na legalidade, sempre que o Partido Comunista era legal. Porque o Partido Comunista Brasileiro sempre era posto na ilegalidade: por Vargas e logo depois pela ditadura militar. Então a escolha pelo Marighella guerrilheiro – que é muito pouco tempo da vida dele, porque ele funda a LN em 68 e é assassinado em 69 – tem a ver com a minha vontade de falar sobre isso. Eu sempre fui muito fascinado por lutas de resistência e pela história dos levantes populares no Brasil: Alfaiates, Malês, Canudos – todas essas histórias que, a meu ver, foram muito mal contadas nos livros de história. E a luta armada não foi diferente. Marighella é um nome da história do Brasil que foi silenciado, apagado. Até hoje é um nome maldito, como disse Jorge Amado lá no túmulo de Marighella, na obra que Niemeyer fez. Jorge Amado escreveu uma coisa bonita: “Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella”. Isso sempre me comoveu muito. E a resistência à ditadura militar, de um ponto de vista geracional, ela está muito próxima à minha geração: é gente que tem 20, 30 anos a mais que eu só. Então eu tinha vontade de fazer algo sobre essa época. E também porque eu queria fazer um filme popular. Eu não queria fazer um filme pra pouca gente ver. Eu queria que fosse um filme visto por muita gente. Por uma coisa minha, de artista mesmo: eu gosto de me comunicar com as pessoas.
SZ: Você disse que quando fez Marighella você se sentiu um ator dirigindo um filme, e não um diretor. E que você se sentiu muito a vontade no set mas que enfrentou alguns novos desafios como, por exemplo, na montagem. Eu queria saber como foi a sua atuação em outros lugares que não no set, quando você lidou com atores, que é o seu ofício?
WM: Pra mim foi um negócio muito prazeroso. Foi uma das melhores experiências artísticas que eu já tive. Apesar de a direção ser um lugar novo pra mim, eu contava ali com muita gente, primeiro, que queria muito fazer aquele filme, que entendia, naquele contexto ali de 2017, já pós-golpe de 2016, já era governo Temer, já com um conservadorismo muito forte, já com uma animosidade muito forte com relação ao filme... essas pessoas que eu reuni para fazer o filme entendiam a necessidade de contar aquela história e tinham muita vontade de ver aquela história contada.
SZ: Não só artisticamente mas também com alinhamento ideológico...
WM: Exatamente. Nós somos muito orgulhosos do filme que fizemos. Entendemos a importância artística e política do filme nesse contexto.
SZ: Então vamos falar desse caminho das pedras que o filme enfrentou até ser lançado agora em 2021. Ele foi para Berlim em 2019, em fevereiro, em agosto a Ancine negou um pedido de reembolso da produtora e também um requerimento do Fundo Setorial do Audiovisual, de rever ali algumas contas de comercialização do filme e, sendo assim, o filme foi mais uma vez adiado. Como você recebeu essas notícias? Também pensando em uma questão de censura?
WM: Absolutamente. Eu nunca tive a menor dúvida disso. Porque eram pedidos absolutamente normais e corriqueiros de qualquer produtora, em condições normais de temperatura e pressão. Tanto que a gente não esperava que os pedidos fossem negados, foi uma surpresa. Mesmo com toda a animosidade, com toda onda com relação a Marighella, pra nós foi uma surpresa. Quanto ao Fundo Setorial, nós havíamos sido contemplados com aquele dinheiro. Não havia razão para que aquilo fosse negado. E foi justamente na época em que o Bolsonaro começou a falar em uma filtragem na Ancine, o negócio da Bruna Surfistinha, o cancelamento de editais para LGBT... Marighella não foi o único produto cultural censurado por esse governo. Basta olhar para quem está lá, comandando a máquina da cultura e de incentivo a cultura. Eu não tenho o menor problema em dizer e eu não tenho a menor dúvida de que o filme passou por censura. Os filhos do Bolsonaro comemoraram essas negativas da Ancine nas redes sociais. Isso é muito duro, né? Essa data agora de novembro é uma data mais segura. A vacinação no Brasil avançou. Então é um momento que a gente tem alguma tranquilidade para lançar o filme. E vamos lançar o filme sem o dinheiro do Fundo Setorial do Audiovisual ao qual teríamos direito, essa verba de lançamento, abrimos mão desse dinheiro. Nós temos certeza que nunca vamos receber esse dinheiro.
SZ: Então essa questão não foi resolvida, vocês que abriram mão?
WM: Abrimos mão. Houve várias tentativas. Até hoje a gente tenta conseguir essa verba da qual o filme tem direito. Mas não vai rolar.
SZ: E no meio do caminho ainda teve a questão do vazamento do filme?
WM: É. Um outro golpe.
SZ: E você que já tinha vivido a experiência do Tropa de Elite, né?
WM: O vazamento do filme era uma coisa mais ou menos esperada. Porque o que aconteceu: o filme foi vendido para vários países mas havia uma acordo de que nenhum filme poderia lançar o filme antes do Brasil, mas o filme não era lançado no Brasil nunca. Então os distribuidores internacionais começaram a querer devolver o filme: “a gente tem que lançar, vocês não deixam a gente lançar, a gente tem que devolver”. Então depois de anos a gente teve que ceder e o filme foi lançado na Europa, nos Estados Unidos, em vários outros países. E a cópia que vazou, foi uma cópia do distribuidor americano porque durante a pandemia, eles lançaram em alguns cinemas e lançaram o filme virtualmente, a pessoa comprava e assistia o filme em casa. E foi daí que o filme vazou.
Um filme ele é a conjunção do que um realizador, do que uma equipe quis dizer com esse filme, com o tempo em que ele é apreciado. Muitos filmes são revistos depois de 20, 30, 40 anos. Pro bem e pro mal. A depender da época em que esse filme é visto. Então lançar esse filme agora, por exemplo, é interessante porque já é diferente de se tivéssemos lançado quando o filme deveria ter sido lançado, em 2019, início do governo Bolsonaro. Hoje em dia já é diferente.
SZ: E o que é diferente?
WM: Eu acho que hoje já há uma compreensão maior, no Brasil, da tragédia que é esse governo. Eu entendo que hoje em dia o filme talvez enfrente menos resistência por parte das pessoas. Por um entendimento do que eu te disse no começo: a polêmica está menos relacionada ao filme em si e está mais conectada ao contexto no qual o filme é lançado. É inacreditável que um produto cultural não possa ter sido lançado numa democracia. Marighella é um filme feito pro cinema, feito para ser visto nos cinemas. É cinemão, é um filmão, tem 2h40, é uma experiência para você viver numa sala de cinema. É o que temos agora e é o que faremos.
SZ: O filme vai ter agora lançamento, por exemplo, no assentamento do MST. Desde sempre eu lembro que você tem essa ideia de fazer esse filme circular em ambientes que não são da elite que frequenta o cinema.
WM: Exatamente. Porque, como eu disse, o filme não é meu. Eu não posso botar o filme onde eu quiser. Mas o que eu puder fazer para popularizar o filme, para o filme chegar em lugares onde as pessoas naturalmente não têm dinheiro para comprar o ingresso do cinema, eu vou fazer. Nós vamos lançar num acampamento do MST, do MTST, de outros movimentos sociais, estamos estabelecendo uma ligação muito forte com o movimento negro, no sentido de levar o movimento para os cinemas – no intuito de fazer com que Marighella, de fato, se torne um personagem da história do povo negro também.
SZ: O filme vai virar também série de TV?
WM: Depois que o filme for lançado nos cinemas, aí ele tem as outras janelas, ele deve ser lançado no Globoplay, no streaming, e depois, posteriormente, ele vai ser transformado numa série que vai passar na TV Globo.
SZ: E agora que você está nesse momento de entrevistas pré-lançamento, como você está se sentindo?
WM: Muito bem! Eu estou reaprendendo a falar sobre o filme. Eu estava falando com o Kleber Mendonça e ele disse: “você tem que rever o filme”. A última vez que eu vi Marighella foi em 2019, quando eu estava viajando com o filme, acho que foi no Festival de Havana. Eu estou muito feliz. Eu estou muito feliz de estar aqui no Brasil. Eu fiquei a pandemia sem poder voltar para cá. Eu nunca tinha ficado mais de seis meses sem ir à Bahia – que é o Brasil pra mim! Então eu estou feliz de estar aqui. A gente está finalmente podendo falar do filme, lançar o filme, enfrentar o que tiver que ser enfrentado. Esse enfrentamento é natural, eu nunca tive medo dele e eu sempre estive muito disposto a enfrentar as implicações políticas do filme. Não fazê-lo não seria coerente com o filme que eu fiz nem com a memória de Marighella. Temos que lutar contra a ditadura.
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