[News] Estrela da música instrumental brasileira, Léa Freire tem magnitude artística e trajetória surpreendente reveladas no filme “A Música Natureza de Léa Freire”
crédito foto: Caroline Bittencourt |
A Léa Freire não foi dado o direito de ser a maior compositora, arranjadora e instrumentista de sua geração em seu país, embora seja celebrada internacionalmente. Mas ela o tomou na surdina, sem muito alarde, com a simplicidade que lhe é peculiar. Muita gente não viu. Uma mulher que desponta em um universo majoritariamente masculino, como o da música instrumental e sinfônica nacional, enfrenta os desafios e apagamentos da misoginia e do machismo. “Foi você mesma quem compôs essa música?” “Você toca tão bem, toca como um homem”. Porém, a partir do dia 18 de julho de 2024, o relativo silêncio em torno da obra e trajetória de uma das mais importantes artistas mulheres da música instrumental mundial pode estar com os dias contados. É nesta data que o documentário "A Música Natureza de Léa Freire", premiado em sete países e dirigido por Lucas Weglinski (“Máquina do Desejo”, sobre Zé Celso Martinez Correa), começa a chegar aos cinemas de todo o país, com o prazeroso sabor de descoberta e distribuição da Descoloniza Filmes.
Imparável, inevitável e imperativa como a natureza, Léa protagoniza seu destino, escrevendo seu caminho em paisagens musicais fluidas e orgânicas, que revelam excelência, amplitude e diversidade artística. Simplesmente porque Léa pode. Mesmo quando todos dizem o contrário. Uma mulher não deve tocar na noite em 1975? Lá estava ela empunhando sua flauta e gabaritando o circuito de clubes de jazz e choro e porões da realeza do samba de São Paulo. A família fechou as portas de casa como represália? A adolescente foi morar com Alaíde Costa, que a adotou e acolheu na vida e nos palcos.
Sempre que tentam traduzir o trabalho musical de Léa Freire, a comparam com homens. Mozart,Tom Jobim, Villa-Lobos, Hermeto, Debussy. Ser referência feminina neste gênero musical ainda é mata fechada, na qual Léa e outras poucas mulheres abriram e abrem caminho munidas de seus instrumentos e sensibilidade. Léa Freire é realmente a união de expressões fascinantes, ao mesmo tempo universais e profundamente brasileiras. Sua autenticidade se deve muito ao fato de ser livre, genuína e tocar seu tempo e seu lugar de forma única. A música é natural como um sexto sentido para a artista. Talvez herança do ouvido absoluto da mãe, que se dizia pianista amadora, confundindo a mente dos concertistas com suas despretensiosas e chocantes aparições de alta performance.Também de forma modesta e simples, Léa é ancestralmente deslumbrante. Escuta cores, vê harmonias, melodias e ritmos em paisagens partituras. Compositora e pianista extraordinária, aprendeu a tocar flauta sozinha, de ouvido e aos 18 anos já dava aulas do instrumento no Centro Livre de Aprendizagem Musical, o CLAM, escola fundada pelo icônico Zimbo Trio em 1973. Aos 18 anos, depois de guardar o dinheiro de shows e aulas para estudar em Boston, esbanjou a maior faculdade de música do mundo, a Berklee. Preferiu aprender o que ainda não conhecia, trocando a sala de aula pelas escadarias dos clubes de jazz, como o Village Vanguard, em Nova Iorque.
Os Originais do Samba - em sua primeira e icônica formação, constituída por Bigode, Bidi, Chiquinho, Lelei, Mussum e Rubão - faziam silêncio total em suas animadas reuniões para ouvi-la com atenção, ao lado do parceiro musical Filó Machado. "Para tudo! Chegou o Filó e a Cinderela. Agora tem que educar os ouvidos com um pouco de clássico" dizia Almir Guineto, irmão de Chiquinho e figura sempre presente nos encontros da realeza do samba de São Paulo, no bar do Amorin, no porão da galeria shopping da Rua Augusta.
Após uma pausa da música - resultado de uma demissão na volta (após apenas dois meses) da licença-maternidade na casa de shows Anexo e uma sequência de portas fechadas - que durou onze anos e a adoeceu gravemente, Léa teve recomendação médica escrita em receita para voltar a fazer música. E em 1997, criou o selo Maritaca, dedicado à música instrumental, que proporcionou importantes registros em estúdio de nomes lendários como Laércio de Freitas, Nenê, Silvia Góes, Nailor Proveta Azevedo (Banda Mantiqueira), Filó Machado, Arismar do Espírito Santo, Tatiana Parra, Edu Ribeiro, Erika Ribeiro e Vinicius Dorin.
A insurgência de Léa em ser independente, estar onde quer e criar o que deseja se reflete em sua assinatura musical que desprende a melodia do tempo e cria um ritmo inesperado. Uma artista de estilo único, diverso e inclassificável. “Para o erudito, sou popular. Para o popular, sou erudito. Para o choro, sou jazz. Para o jazz sou do choro”, analisa. Também é discreta demais para se assumir diva. E diva demais para ser contida. Usa o preconceito contra ele mesmo, estampado numa camiseta ilustrada por ela com os dizeres "Cuidado, velha maluca". Uma inversão contra a misoginia que viveu a vida toda e que agora ganha requintes de etarismo.
Homens músicos extraordinários não são malucos, são gênios. Não são velhos, são mestres. Pois que a mestra genial da música brasileira possa finalmente, após a exibição do documentário no Brasil, assumir seu posto e ser devidamente reconhecida em vida no seu país. E que nas ruas, quem sabe a gente veja pessoas ostentando camisetas "Toque como Léa Freire". Porque além de exímia pianista e flautista, Léa toca pessoas e desperta nelas a sensibilidade musical.
Enquanto a ativista feminista bell hooks aborda o amor como ação, Léa Freire mostra que sensibilizar é revolucionário. “Fazendo música a gente sensibiliza as pessoas, fazendo arte de uma forma geral. Ao invés de dessensibilizar, que é o que o poder quer, que você não sinta nada e seja uma ferramenta de fazer dinheiro. A arte tem essa função de lembrar você que você existe, que é íntegro, inteiro e completo em si.”, reflete a artista.
Parece haver uma relação de complementaridade entre as visões da estadunidense e da artista brasileira, sempre dedicada a projetos sociais de arte e educação. No primeiro capítulo do livro “Tudo sobre o amor: novas perspectivas (Trilogia do Amor Livro 1)”, de bell hooks (2000), encontramos a definição de amor como “vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o crescimento espiritual de outra pessoa”. A revolução pela sensibilização de Léa Freire incorpora esse conceito e o amplia ao investir na propagação da sensibilidade, por meio da música e de projetos sociais, desde que tocou em unidades de prisões juvenis (chamadas na época Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor- FEBEM), entre 1974 e 1975, com Alaíde Costa e Filó Machado.
Hoje, Léa atua em universidades públicas, no projeto Guri e está constantemente envolvida com instituições que promovem educação musical para o desenvolvimento humano em todo Brasil. “Projetos sociais de formação musical promovem a ascensão social das famílias, criam novos públicos e inspiram pessoas mais sensíveis. Eu acho importante esteticamente, politicamente, musicalmente e eticamente.”, explica a compositora. Durante o lançamento do documentário que conta sua história, a artista vai participar de ações especiais, com exibições, oficinas e apresentações musicais em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Fortaleza, Brasília, além de outras cidades que serão confirmadas em breve. A programação completa será atualizada sempre nas redes de Léa Freire e da Descoloniza Filmes.
O documentário “A Música Natureza de Léa Freire” já passou por dezenas de festivais em todo o mundo e acumula doze prêmios até então: Prêmio SPCINE 2022, Melhor Documentário Los Angeles Brazilian Film Festival. 2022, Melhor Documentário New York Tri State Film Festival. 2023, Melhor Música Roma International Film Festival. 2023, Prêmio de Empoderamento Feminino Tokyo International Film Festival 2022, Melhor Produção Seoul International Film Festival 2022, Melhor Diretor de Documentário New Wave Munich International Film Festival 2022, Melhor Filme, Melhor Edição, Melhor Desenho de Som Sunworld Film Festival (India) 2022 e participações em festivais como Visions du Réel e San Francisco
Nas palavras do Diretor Lucas Weglinski
“Este filme foi milagrosamente realizado com o exíguo Fundo de Auxílio Emergencial do Covid, a chamada Lei Aldir Blanc, com imenso esforço e com todo coração. Pois acreditamos que nossa cultura é nossa memória, e devemos sempre lembrar dos nossos mais velhos, dos primeiros, que muitas vezes são criminosamente apagados da nossa história.
Neste filme saudamos as raízes, muitas vezes ignoradas ou esquecidas, da música brasileira, seja ela instrumental ou sinfônica, é fundamental celebrarmos sua ancestralidade, a fonte das águas bebidas por Léa Freire: Filó Machado, Alaíde Costa, Johnny Alf, Originais do Samba, Regional do Evandro, Manezinho da Flauta, enfim músicos a frente de seu tempo, inovadores, que desafiaram os padrões sociais e estéticos e fundaram uma nova cena musical brasileira e que devem ser lembrados com toda glória que merecem. Sejamos apenas historicamente justos.
Apesar da Música ser protagonista, esse filme tem algumas mensagens para além da música. Falamos da FEBEM (Prisão Infantil) mas também do Projeto Guri, e indagamos: que Brasil desejamos? O que encarcera as crianças pobres ou o que cria escolas públicas profissionalizantes de música para que nossa criançada possa voar para onde quiser do mundo, como por exemplo a Orquestra Sinfônica de Berlim, que é citada no filme.
Falamos do apagamento das mulheres da nossa história, ainda mais quando são criadoras, inventoras de novas linguagens e novas formas. Falamos também sobre as origens afro-brasileiras de toda música brasileira, inclusive a sinfônica. Resgatamos personagens que foram convenientemente “esquecidos”. Esse filme é um filme sobre o Brasil, sua riqueza, suas dores e delícias. A música e vida desta artista é apenas um caminho para falarmos da nossa cultura, nossa raiz, nossa terra. Como dizem por aí, se vc quiser fazer um filme sobre os correios, conte a história de uma carta.
Contra todas as dificuldades e estatísticas, apresentamos A Música Natureza de Léa Freire, um filme de longa metragem, que almeja transbordar beleza e poesia, neste tempos violentos que vivemos. Por fim, esse não é um filme musical mas não um filme “de música, para músicos”, é um filme de cinema para todos, com um profundo trabalho de roteiro, pesquisa, montagem, fotografia e som: as bases e fundamentos do cinema e o que o caracteriza como linguagem própria, diferente da televisão e do jornalismo. Cinema.
Sobre Lucas Weglinski
Trabalha com cinema há 20 anos, com incursões nas Artes Visuais, Videoarte, Teatro e Música. É Roteirista, Diretor, Montador e Desenhista de Som. Em 2023 lançou nos cinemas o longa-metragem Máquina do Desejo, que permaneceu em cartaz nos cinemas do Brasil por mais de cinco meses, após percorrer dezenas de festivais e juntar inúmeros prêmios. O mesmo percurso vem sendo trilhado por seu segundo longa documental, A Música Natureza de Léa Freire, que agora prepara seu lançamento comercial. Lucas acaba de filmar seu primeiro longa de ficção “A Noite é uma Farsa”, do qual é Roteirista, Diretor, Montador e Desenhista de Som. E também está montando seu terceiro longa documentário “Rei da Noite”, sobre Ricardo Amaral, cuja história é muito mais do que suas icônicas casas noturnas e La Dolce Vitta da Alta Sociedade do Rio, Paris e NY. Na vida deste Rei da Noite, como um desfile de Escola de Samba, descobrimos como nasceram os Fogos de Copacabana, porque Caetano e Gil foram presos na sua boate Sucata, como golfinhos de Miami fugiram e repopularam a baía de Guanabara, porque foi inventado o Engov ou os camarotes de celebridades na Sapucaí e personagens como Pelé, Danuza Leão, Príncipe Charles, Fellini, Luiza Brunet, Jaguar, Troisgros, Dzi Croquettes e a máfia de NY se cruzam neste Vaudeville.
Sobre a Descoloniza Filmes
A Descoloniza Filmes é uma distribuidora e produtora paulistana fundada por Ibirá Machado em 2017 e lançou comercialmente seu primeiro filme em 2018, a produção argentina “Minha Amiga do Parque”, de Ana Katz, que teve seu roteiro premiado no Festival de Sundance. Na sequência, ainda em 2018, distribuiu o filme “Híbridos - Os Espíritos do Brasil”, de Priscilla Telmon e Vincent Moon, o chileno “Rei”, de Niles Atallah, que levou menção honrosa do Festival de Rotterdam, e “Como Fotografei os Yanomami”, de Otavio Cury.
Em 2019, a Descoloniza codistribuiu junto à Vitrine Filmes a obra “Los Silencios”, de Beatriz Seigner, que fez sua estreia na Quinzena dos Realizadores, de Cannes, seguindo com a distribuição de “Amazônia - O Despertar da Florestania”, de Christiane Torloni e Miguel Przewodowski, e encerrou o ano com “Carta Para Além dos Muros”, de André Canto, que foi licenciado à Netflix e ocupou o Top 10 da plataforma por mais de duas semanas.
Em 2020, devido ao cenário pandêmico, a distribuidora lançou comercialmente diretamente nas plataformas digitais apenas o filme “Saudade Mundão”, de Julia Hannud e Catharina Scarpelini, obra contemplada com o Edital de Distribuição da Spcine, de 2019. O cenário retomou parcialmente em 2021, quando a distribuidora lançou a obra “Castelo de Terra”, de Oriane Descout, “Cavalo”, de Rafhael Barbosa e Werner Salles, “Parque Oeste”, de Fabiana Assis,e “Aleluia, o canto infinito do Tincoã”, de Tenille Barbosa.
Em 2022, a Descoloniza retomou os lançamentos e levou aos cinemas as obras “Sem Rosto”, de Sonia Guggisberg, “Gyuri”, de Mariana Lacerda, e “Aquilo que Eu Nunca Perdi”, de Marina Thomé. Prepara ainda o lançamento de “Êxtase”, de Moara Passoni.
Em 2023, a distribuidora lançou nos cinemas o filme “Muribeca”, de Alcione Ferreira e Camilo Soares, “Para’í”, de Vinicius Toro, “Espera”, de Cao Guimarães, “Seus Ossos e Seus Olhos”, de Caetano Gotardo, “Luz nos Trópicos”, de Paula Gaitán, “Máquina do Desejo”, de Lucas Weglinski e Joaquim Castro, “Para Onde Voam as Feiticeiras”, de Eliane Caffé, Carla Caffé e Beto Amaral, e “Incompatível com a Vida”, de Eliza Capai.
Já em 2024, já estão confirmados os lançamentos de “Amanhã”, de Marcos Pimentel, “Dorival Caymmi - Um Homem de Afetos”, de Daniela Broitman, “Toda Noite Estarei Lá”, de Tati Franklin e Suellen Vasconcelos, “A Música Natureza de Léa Freire”, de Lucas Weglinski, “Maputo Nakuzandza”, de Ariadne Zampaulo, “Peréio eu te odeio”, de Allan Sieber e Tasso Dourado, e “Empate”, de Sérgio Carvalho.
Como produtora, a Descoloniza absorveu a experiência pregressa de Ibirá Machado como produtor executivo de longas e curtas e assumiu a coprodução do filme “Nós Somos o Amanhã”, de Lufe Steffen, contemplado nos editais do Proac Expresso 2021 e de finalização da Spcine 2021.
Ficha Técnica
Direção, Fotografia, Montagem, Desenho de Som e Roteiro: Lucas Weglinski
Protagonistas: Léa Freire, Alaíde Costa, Amilton Godoy, Silvia Góes, Filó Machado, Arismar do Espírito Santo, Joana Queiroz, Erika Ribeiro, Tatiana Parra, Jane Lenoir, Keith Underwood, Orquestra Sinfônica da Unicamp, Orquestra Jovem Projeto Guri, Câmaranóva e Originais do Samba.
Fotografía: Louise Botkay e Joaquim Castro
Direção Musical: Maestro Felipe Senna
Mixagem e Masterização: Homero Lotito
Produtores: Carolina Kotscho e Clara Ramos
Produção Executiva: Heloisa Jinzenji, Fernando Nogueira e Lucas Weglinski
País: Brasil
Ano: 2022
Duração: 99 min.
Produção: Agalma Filmes e Loma Filmes
CoProdução: SPCine
Distribuição: Descoloniza Filmes e SPCine
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