[News] Moara Passoni participa do Festival de Veneza, na sessão competitiva Mostra Orizzonti, com o curta-metragem ‘Minha mãe é uma vaca’





Moara Passoni estreia seu curta-metragem de ficção “Minha mãe é uma vaca” na mostra competitiva Orizzonti, do Festival de Veneza. O filme se passa num Pantanal em chamas e acompanha Mia (Luísa Bastos), 11 anos, que se pergunta sobre a experiência radical de vida e morte na natureza. Quando uma onça entra em choque com sua realidade, seus medos são materializados. Tentando se conectar intensamente com a mãe, o amor chega para ela de uma maneira completamente inesperada. Concorrendo com outras 12 produções, ele terá três exibições no festival, com tapete vermelho no dia 5 de setembro.

 

O curta-metragem de 15 minutos segue Mia, que é deixada pela mãe, cuja vida está em apuros, num ônibus rumo ao Pantanal. Lá, ela vai passar uma temporada de descobertas e transformações no sítio da tia. Deslocada naquela realidade tão distinta da cidade grande, com o agravante de queimadas cada vez mais próximas à fazenda, ela forma um laço com uma vaca que está para ser abatida, enquanto descobre as mudanças de seu próprio corpo na puberdade. Aqui, a vaca e a onça ocupam lugares míticos na vida de uma garota em intensa transição, transmutação.

 

“Minha mãe é uma vaca” é uma produção de Sofia Geld e Daniel Liu, da Uvaia Filmes, uma produtora de cinema dedicada a criar conteúdo de alta qualidade pela perspectiva de artistas brasileiros. “Temos o maior orgulho em compartilhar a história da corajosa Mia, do mágico Pantanal e do supremo poder do amor materno. O filme, não apenas representa visão forte e excelência artística da Moara Passoni, mas também é fruto de uma equipe de profissionais excepcionais, que formaram uma verdadeira família criativa. Temos consciência do impacto que cada narrativa pode ter em seu lançamento. Aproveitamos todas as oportunidades para destacar os efeitos devastadores dos incêndios, com a esperança de aumentar a conscientização e mobilizar apoio para a preservação do Pantanal.” Uvaia Filmes traz parcerias com festivais internacionais como, TiFF, Berlinale e IDFA, além de instituições como The Gotham, Women Make Movies, Chicken & Egg, NEON, Hulu e Disney. Atualmente a Uvaia tem sedes em São Paulo e Nova Iorque.  

 

Criada no Jardim Ângela, na periferia de São Paulo, Moara foi impactada por sua primeira viagem ao Mato Grosso do Sul, quando era criança. “Minha tia morava com a família numa fazenda no Pantanal. Passei alguns meses com ela. Para mim, que nasci e cresci na intensidade da “selva de pedras” que é São Paulo, foi fascinante a descoberta da natureza e seus ciclos. Lá me conectei com uma vaca morrendo e nunca esqueci o olho dela quando perde a vida. O curta nasce desta imagem forte”, conta Moara.

 

Tudo isso num lugar em que a ameaça ambiental se faz cada vez mais presente na rotina das pessoas. A fazenda em que Mia está ainda não pega fogo, mas a queimada está cada vez mais próxima. Com isso, animais que em geral ficam na mata, como as onças, passam a estar à espreita. A ficção se aproxima da realidade: tempos depois de gravar ao longo de 10 dias na Reserva Caiman, espaço que promove um turismo sustentável, Moara soube que 80% da área da fazenda foi destruída pelo fogo. “No filme, a família de Mia vai se vendo encurralada, enquanto tenta ter uma vida normal, da mesma forma que nós lidamos com as mudanças climáticas. Ali essa realidade é ainda mais intensa: o lugar mais úmido da Terra está ardendo em fogo.”

 

No filme, a vaca, como um animal mítico, é o elo para a descoberta do poder do amor. “O filme tem muitas camadas. É sobre uma menina em transmutação. Todos os meus trabalhos falam, de certa maneira, do amor de mãe. Para mim, um amor disruptivo, capaz de criação e transformação.”

 

Moara é colaboradora constante das produções de Petra Costa: foi produtora associada de “Elena” (2014), colaborou no roteiro de “Olmo e a gaivota” (2015), foi corroteirista e produtora associada de “Democracia em vertigem” (2019), documentário que concorreu ao Oscar da categoria, e colaborou no roteiro, além de ter dirigido algumas cenas de “Apocalipse nos trópicos”, produção que também vai estrear no Festival de Veneza, fora de competição. O longa investiga as relações entre religião e poder no Brasil.

 

“Minha afinidade profissional e afetiva com a Petra vem de longa data. Sinto que compartilhamos a experiência e a proximidade com a política na intimidade de casa. E essa experiência nos leva o tempo todo a nos perguntarmos como história e biografia se cruzam”, conta Moara.

 

Moara leva sua experiência de vida para as tramas que produz. Foi assim, por exemplo, no seu primeiro longa, “Êxtase”. Ganhador de diversos prêmios internacionais, ele foi exibido a partir de 2020 em mais de 30 festivais ao redor do mundo, como o MoMA’s Doc Fortnight, o Cinema do Real e o CPH:DOX Awards. Com produção de Petra Costa, o filme mergulha na realidade de uma menina com anorexia, transtorno que afetou Moara dos 11 aos 18 anos. “Tentei contar a história do ponto de vista de quem viveu esse padecimento. Para realizar o filme, desenvolvi por anos uma pesquisa com outras mulheres que viveram anorexia, que compartilharam comigo seus diários e histórias. O filme acontece entre minha experiência pessoal e a experiência dessas mulheres. É um filme muito sensorial. O desafio foi criar uma linguagem cinematográfica para evocar aquela vivência sem banalizá-la”, conta Moara, que foi destacada como uma das 25 Novas Faces do Cinema Independente pela “Filmmaker Magazine” em 2020.

 

Longa, minissérie e documentário no forno

 

Entre uma infância em meio a movimentos populares e a vida atual de cineasta, Moara Passoni buscou formações que foram criando camadas em sua forma de ver o mundo e fazer cinema. Formada em Ciências Sociais pela USP, ela estudou Artes do Corpo na PUC e Filosofia na Paris 8. Mas o cinema sempre cruzou seu caminho e, de um modo ou de outro, a puxou de volta. Fez dois mestrados sobre documentário, na Unicamp e na FGV, e começou a trabalhar na área primeiro com sua cinefilia, fundando e organizando cineclubes,  e, depois, trabalhando como assistente de direção do cineasta Kiko Goifman.

 

 

Descobriu, então, que a ficção lhe permitiria acessar e dar a ver outras camadas da realidade. “A ficção nos permite chegar a lugares da intimidade que o documentário, por sua dimensão ética fundamental, muitas vezes não permite. Nesse sentido, a ficção, para mim, é um lugar de liberdade para me aproximar e levantar perguntas sobre a condição humana e mergulhar na investigação de certas fissuras do real”, observa ela. Resolveu então ir estudar na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de Los Baños, em Cuba, em busca das poéticas latino-americanas para contar nossas histórias. Mas concluiu que seria importante primeiro tentar entender como as narrativas clássicas são construídas antes de tentar desconstruí-las. Com esse intuito, foi fazer o mestrado em roteiro e direção de ficção na Universidade de Columbia, em Nova York, onde foi recipiente do Milena Jelinek Memorial Award.

 

E são narrativas clássicas dois outros projetos autorais e de ficção a que Moara está se dedicando agora: o longa “Custo de Vida” e a série “Democracia Corinthiana”. No primeiro, ela parte mais uma vez de uma história real que viveu de perto. Tendo como cenário seu Jardim Ângela da infância, ela conta a trajetória de mulheres que criaram o Movimento Custo de Vida. Em 1973, foram as donas de casa as primeiras a se rebelarem contra o contraste entre o discurso do milagre econômico imposto pela ditadura e o preço da comida nos mercados. Irma Passoni, sua mãe, foi uma delas. “Minha mãe, para mim, é uma força da natureza. Dessas que não conseguimos parar. E provavelmente por seu amor ao outro, à dignidade humana e à coisa pública. E por sua fé, que muitas vezes lhe dá capacidade de enxergar possibilidades quando elas ainda não são tão evidentes. Sua capacidade de realização me inspira.”

 

“O que me fascina na protagonista do Custo de Vida e que, contra toda a lógica da sociedade, ela vive intimamente uma mudança quase imperceptível da qual tira a energia que abalará tudo ao redor. Os grandes movimentos políticos se sentem na pele, é isso que vamos filmar.”

 

“Acho impressionante como as mulheres que construíram o Movimento Custo de Vida nos anos 70 ainda são contemporâneas. A história desse movimento se liga à discussão sobre a economia do cuidado, tão em voga hoje em dia, sendo inclusive o tema de pesquisa de Claudia Goldin, vencedora do último Prêmio Nobel de Economia. Mas o filme é sobretudo sobre a descoberta da própria voz, e como, ao descobrirmos nossa própria voz, inspiramos outras pessoas a fazerem o mesmo. Sobre algo que pode parecer muito básico, mas é muito verdadeiro para mim: o que pode uma mulher quando ela aprende a amar a si mesma”, diz a cineasta, que conta com o apoio de Sofia Geld e Daniel Liu na Uvaia Filmes (produtora com quem também realizou o curta) e da Maria Farinha filmes para desenvolver o projeto.

 

Moara fez 25 entrevistas com participantes do movimento – que, depois, foram a base do livro do historiador Thiago Monteiro sobre o tema – e começou a desenvolver o roteiro, junto com a roteirista indicada ao Oscar Christina Lazaridi, com apoio de projetos internacionais como Torino Script Lab, Cine Qua Non Lab e Projeto Paradiso. Também foi um dos dez selecionados pelo Berlinale Talents Market.


O outro projeto a que Moara tem se dedicado é a de uma série de ficção para a TV a partir de seu artigo “How Sócrates and his teammates offered a model of governance and why it ended” (“Como Sócrates e seus colegas de time propuseram um modelo de governança e por que ele terminou”, em tradução livre), que Moara publicou na revista “The Blizzard”, editada pelo jornalista britânico de futebol Jonathan Wilson. O projeto foi primeiramente desenvolvido durante workshops de roteiro do Sundance Collab e do La Fémis-Columbia TV Writing Atelier. A série está sendo desenvolvida com a Maria Farinha Filmes e um grande player.

 

Moara também tem um projeto em pós-produção, que tem ligação direta com seus muitos anos de ativismo voluntário na área ambiental. Ela coescreveu, com a atual deputada federal Célia Xakriabá, o roteiro do longa documental “O Futuro é Ancestral”, sobre a criação musical do DJ Alok em conjunto com comunidades indígenas.

 

“Acho que todos os meus projetos se ligam de alguma forma. De um lado, claro, como cineasta, está a pergunta sobre nossa condição humana e como o amor pode ser das forças mais disruptivas e criativas, e permitir que a gente se mova. Por outro, entendo que meu cinema terá sempre a pergunta sobre como, em nossa intimidade, somos perpassados pela política, pelas forças políticas. Mesmo que ignoremos sua existência. Além disso, é sempre para o corpo que olho, o corpo como alegria e explosão de sensações e o corpo como resistência, onde o sensual/sensorial, encontra o político.”

 

“Por fim, em meu trabalho me pergunto constantemente como é que pessoas, nas margens da sociedade, estão sempre reinventando a política. Minhas protagonistas, em sua grande maioria mulheres, normalmente habitam a margem. E claro, a questão ambiental me parece, hoje, a mais urgente de todas, e que perpassa todas as outras”, resume Moara.

 

Minha mãe é uma vaca

 

por Maurício Ayer

Urbe imensa

Pensa o que é e será e foi

Pensa no boi

Caetano Veloso, Aboio

 

Raras vezes um filme terá mobilizado tantas camadas simbólicas numa duração tão exígua. Em “Minha mãe é uma vaca”, como num conto de Guimarães Rosa, curto e cortante, a diretora Moara Passoni cria um espaço imaginário de contrastes e metamorfoses entre o urbano e o rural, o humano e o animal, conflitos políticos e dramas ambientais, enfim, entre vida e morte em seus múltiplos significados.


No primeiro quadro, o rosto da mãe, enigmática máscara, toma a tela inteira. Depois vem o rosto da filha – que sangra pelo nariz e recebe um último cuidado. É o cara a cara de uma separação. Essa ruptura arranca Mia do contato físico do corpo materno. Sua mãe corre perigo, por isso a envia para ficar em segurança na casa dos tios, em uma fazenda no Pantanal. O medo de que algo extremo aconteça à mãe circula nas conversas que a garota ouve pelos cantos. Mia tenta protegê-la com manobras do pensamento mágico. Mas ela sangra, novamente, agora como se a infância lhe escorresse pelas pernas. 


Nessa zona limítrofe entre o rural e o selvagem, vida e morte são palpáveis na criação e no sacrifício de animais. Uma onça ronda, ameaça o rebanho, está comendo os bezerros. Um onceiro descreve como usa a zagaia para matar esses grandes predadores. No momento não há para onde levar o gado, pois o fogo se alastra pelas matas. O fogo não é natural nem acidental, na maioria das vezes os incêndios são criminosos, atiçados pela ganância de liberar áreas de floresta para novas pastagens. Um conflito civilizatório de dimensões épicas está em curso. A celebração da Páscoa evoca o simbolismo da passagem e da ressurreição.


Os sentidos circulam, como a menina entre o rio, a casa, o curral e o matagal. O mundo em estado nômade: tudo é e não é. No seu profundo desamparo, Mia de repente reconhece na vaca os olhos da mãe. Como se esse conto cinematográfico, de aparência realista, de repente começasse a habitar o mito, fazendo ressoar nos seus ritmos profundos uma dimensão xamânica.


O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro explica que, em muitas culturas, o xamã é o único que consegue transitar entre as perspectivas de humanos, deuses e animais. O xamã ou alguém que esteja muito adoecido. A menina vive esse lugar metamórfico. Seria a adolescência uma espécie de adoecimento, necessário à transformação? Ou sua doença é o medo radical, que desloca todos os parâmetros?


O medo se materializa na onça. É muito concreto. Ligada à vaca, cujo nome é Amorosa, Mia quer protegê-la dos seus predadores, tanto os humanos como os animais. Para enfrentá-los, ela pode se converter no seu oposto, adentrar uma encruzilhada entre a menina, a vaca e a onça. Vem-lhe à flor da pele o animal-mulher que a ela já começa a ser. Feroz, como sua mãe.

 



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