[Artigo] As emoções por trás das histórias de Natal: em busca pelo real sentido da data
A mesa estará posta logo, logo. Com chester, tender e peru no menu salgado; e rabanada, panetone e bolo de Natal nos doces. Uma semana depois, a festa se repetirá com bacalhoada, sopa de lentilha e tender, tendo manjar branco e pavê como sobremesas. Farofa de passas, arroz à grega, salpicão e maionese... Uma toalha de mesa vermelha e branca, com detalhes de presentes e renas, adornando a reunião familiar. Alguns farão uma oração antes da ceia, não faltará bebidas. Para aqueles de Papai Noel mais magro, talvez um pernilzinho assado e gelatina com leite condensado. É a fartura das festas de fim de ano, é o Natal e o Ano Novo. Mas é ainda mais, muito mais...
Quatro histórias de Natal
Quatro passageiros estão em uma barca, a travessia é curta. Um bêbado conversa com um vizinho imaginário e logo adormece, ele é irrelevante para a história. Sobram duas mulheres, que não se conhecem, e uma criança de colo. A mãe leva o filho, bastante febril em um xale, para o médico, enquanto a outra mulher, sentada ao seu lado, observa o rio, sem disposição para conversar. Ela será a narradora da história. Por obra de nossos vasos comunicantes, a mãe e a narradora começam a conversar. A mãe conta a sua vida trágica. Foi mãe de um filho que queria ser mágico. Um dia ele subiu no muro e avisou: “Vou voar”. E voou, primeiro para o chão, depois para aquele lugar de onde não se manda notícias. O muro não era tão alto, mas a queda foi de um tal jeito que... Tinha quatro anos. A mãe foi abandonada pelo marido seis meses depois da tragédia. O marido encontrara uma antiga namorada por acaso e brincou: “A Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito?”. Dias depois, em uma manhã, ele tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar como fazia todas as manhãs. No fim da tarde, a mãe recebeu a carta de despedida do marido. Ele agora era da Bila. Sem saber o que dizer, sem saber o que fazer, ouvindo atônita a história, a narradora levanta o xale da criança e percebe que ela está morta. A travessia da barca está quase terminando, e a narradora quer desesperadamente saltar da embarcação para não presenciar mais uma dor na vida daquela mãe. Mas é noite de Natal, e eis então que o improvável acontece no conto Natal na Barca.
Antes Só do que Mal Acompanhado? O ano é 1987, e o tenso executivo Neal Page (Steve Martin) quer voltar para a sua casa em Chicago para o feriado de Ação de Graças, uma espécie de Natal fora de época dos norte-americanos. Mas tudo dá errado. Primeiro, o bonachão Del Griffith (John Candy), até então um desconhecido, rouba o seu táxi até o aeroporto. Antes do voo, Neal é transferido para um assento da segunda classe ao lado de Del, cujo jeito amigável irrita Neal. Por conta de uma nevasca em Chicago, o
voo é desviado e uma sucessão de desastrosos incidentes acontecem quando a dupla tenta voltar para casa pelo chão (eles são furtados, depois o carro alugado é queimado e apreendido pela polícia). Neal explode com Del e o critica duramente. Del se defende, alegando gostar de seu jeito de ser, assim como a sua mulher também gosta. Parece então que Del tem uma família para voltar. Novas confusões acontecem, mas a dupla consegue retornar para Chicago a tempo de celebrarem o feriado de Ação de Graças. Eles se despedem em uma estação. Intrigado, porém, Neal liga os pontos sobre Del e volta para descobrir o “amigo” sentado sob a sua mala. Del tinha perdido a esposa há oito anos e vivia sem rumo desde então. É, então, que Neal revela o seu desconhecido lado humano e convida Del para passar o Natal com a sua família. Que filme!
Também Ebenezer Scrooge teve um Natal. Em Um Conto de Natal, Scrooge é um homem muito rico, mas bastante avarento que detesta o Natal. Mesmo em um inverno londrino rigoroso, ele utiliza um mínimo de carvão para aquecer o ambiente e repreende o seu funcionário Bob Cratchit, um homem generoso e modesto, por querer adicionar mais carvão à lareira. E para economizar velas, Scrooge mantém o seu escritório praticamente às escuras. A economia extrema vem da obsessão por acumular riquezas. Ao mesmo tempo, Scrooge se relaciona friamente com o seu único sobrinho e não tem amigos. A falta de calor físico é uma metáfora para a falta de calor humano. A mudança de Scrooge acontece após um evento sobrenatural em uma véspera de natal. Ele se vê no passado como o adolescente que amava o Natal, observa no presente o Natal humilde, mas feliz de Bob Cratchit com a sua família e antevê o seu futuro em uma morte solitária e triste. No fim, Scrooge acorda renascido: tornou-se um homem que ama o Natal e é generoso com as pessoas.
Alguns acreditam no contrário, eu sei, mas A Felicidade não se Compra em uma vida maravilhosa. Em uma noite de Natal, George Bailey (James Stewart), um homem generoso que sempre ajudou a todos, pensa em se suicidar pulando de uma ponte. Ele está endividado, por conta das maquinações de Henry Potter (Lionel Barrymore), o homem mais rico da região. Mas tantas pessoas amam e oram por George, que um anjo é enviado à Terra para relembrar George em flashbacks de seu grande valor. O filme é a força da esperança e do otimismo em cartaz.
Onde quer que vocês estejam, muito obrigado Lygia Fagundes Telles, John Hughes/John Candy, Charles Dickens e James Stewart/Donna Reed/Frank Capra. Obrigado por nos relembrarem o verdadeiro sentido do Natal!
Mas as histórias não acabam ali. Tem o presente que importa em Presente dos Magos, a irreverência calorosa de Esqueceram de Mim e até a esperança triste da Menina dos Fósforos.
As emoções por trás das histórias de Natal
Na ficção e na vida real, são muitas as emoções do Natal. A família espera um ano inteiro para se reencontrar, alguém compra um presente para uma criança carente, o pai perdoa o filho. As pessoas se tornam mais generosas e afetivas, com a esperança e o otimismo prevalecendo. É como se todos nós, em uma época do ano, nos tornássemos moralmente superiores, com pensamentos mais elevados e atitudes mais nobres. Logo vem o Novo Ano, com a esperança de que o novo ciclo seja melhor que o último. Mas por que os dias de seres humanos maiores acabam em tão pouco janeiro?
Também me pergunto a razão de agirmos melhor no Natal, mas essa pergunta, arrisco responder. É o gosto humano pelo sublime. Quem, alguma vez, viu a infinitude das montanhas em verde do alto da Cidade de Pedras ou a exuberância da cachoeira Véu de Noiva; quem reverenciou um quadro do Kandinsky ou do Benedito Nunes, ou um belo drible do Vinicius Junior ou do Stephen Curry; quem conheceu um pouco mais de Madre Teresa de Calcutá ou Chico Xavier, Tereza de Benguela ou Gandhi, essas grandes personalidades que nos inspiram a melhorar; quem se surpreendeu consigo em um ato inesperado de compaixão e bondade: quem viveu assim, experimentou um pouquinho do sublime, essa emoção transcendente, avassaladora e quase indescritível.
O sublime causa reverência e admiração, assombro e temor. Por transcender a compreensão humana devido à infinitude que o acompanha e nos atrai, sentir o sublime nos faz sentir pequeno e grande simultaneamente. Pequeno pela nossa incapacidade de compreender os fenômenos grandiosos, as pessoas espetaculares, grande pela capacidade de admirá-los, apesar de nossa limitação. É como passear pela imensidão de estrelas coloridas, navegar pelo infinito do oceano azul, descobrir como Newton a lei da gravitação universal ou tocar o invisível manto de Jesus, tudo ao mesmo tempo. O sublime nos inspira!
Mencionei, enfim, Jesus, uma unanimidade, apesar dos cristãos. O Natal é a celebração de seu nascimento para os crentes como eu e, como toda experiência sublime, pode inspirar. Mas o que fez Jesus? Ele conversou com a mulher samaritana, cuja reputação era questionável por ter tido cinco maridos e defendeu uma mulher adúltera, que seria apedrejada; compadeceu-se com os mais fracos, ressuscitando o filho de uma vulnerável viúva e curando um cego, silenciado pela multidão; defendeu a justiça social, como na parábola do rico e de Lázaro, na multiplicação de pães e peixes, na oferta da viúva pobre que deu tudo o que tinha e na bem-aventurança aos famintos; ouviu Zaqueu, um cobrador de impostos (profissão odiada pelo povo), curou um leproso, reintegrando-o à sociedade, acolheu uma prostituta e abraçou as crianças, isto é, atendeu os excluídos.
Que o milagre ocorrido no Natal na Barca, que a solidariedade de Antes Só do que Mal Acompanhado, que a redenção de Scrooge em Um Conto de Natal, que a força moral
de George Bailey em A Felicidade não se Compra, que o exemplo de Jesus nos inspirem neste Natal. E depois dele!
*Rinaldo Segundo é promotor de justiça e atua, principalmente, na área de homicídios e crimes sexuais contra crianças e adolescentes, onde sente diariamente as emoções alheias refletidas em si. Formado em Economia e Direito, com mestrado em Desenvolvimento Sustentável (Harvard Law School), também é autor do recém-lançado livro de contos “Emoções: A Grandeza Humana” (144 páginas, Editora Labrador). Inspirada em sua vivência profissional, a obra expõe dramas sociais da atualidade e as emoções como ponto comum na experiência humana.
Por Rinaldo Segundo
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